quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O velório da vovó

Minha avó morreu de repente. Isso já era até esperando, pois há alguns anos ela parecia uma velinha apagando... Mesmo assim, a notícia nos pegou um tanto desprevenidos. Lembro que estava no trabalho quando meu marido ligou:
- Oi, tudo bem?
- Tudo, e você?
- Tudo. Mas tá bem mesmo? O trabalho está calmo?
- Tá, porquê?
- Porque sua avó morreu...
Dá pra ver que sutileza não é o forte dele.

Nunca tive muita afinidade com minha avó materna, mas senti nesse momento meu último laço com a infância se partir. Senti pena da minha mãe... Vovó moreu em casa, aparentemente uma insuficiência respiratória, e ainda estava lá aguardando remoção, com minha mãe e a cuidadora. No caminho para lá fiquei pensando se teria coragem de vê-la assim, sem vida. Por trabalhar em hospital já vi muitos corpos de desconhecidos, mas, de conhecidos, nunca havia conseguido chegar perto.

Cheguei lá de mansinho, abracei minha mãe e olhei vovó com o canto do olho. Ela estava com o vestido das bodas de ouro, que agora parecia grande demais , depois de anos de perda de peso.
Aos poucos fui me aproximando, e me espantei com a sensação de que ela estava viva. Coloquei até um espelhinho na frente de sua boca, mas era só impressão mesmo, nada de respiração. Se bem que seus cabelos denunciavam a falta de vida, poucas horas após sua morte e pareciam cabelos de boneca...

Minha avó era muito bonita e vaidosa, e resolvi não deixá-la sair dali sem batom; achei um vermelho em seu armário, que contrastou com o tom pálido do rosto, e também passei um pente em seus cabelos, que teimaram em não se ajeitar. Logo em seguida os funcionários da Santa Casa chegaram para levá-la.

Seguimos para o enterro, que felizmente conseguimos marcar para o mesmo dia, fim da tarde. Como foi tudo muito rápido acabamos por não avisar a ninguém além da família.
Estávamos no velório quando chega uma senhorinha simpática e muito animada, levando-se em conta que a situação não era das mais felizes. Se apresenta como membro da pastoral do cemitério e diz ter vindo para fazer uma oração. Se aproxima do caixão, e...
- Nossa, como ela está linda, nem parece que morreu!
Olha para minha mãe e minha tia e pergunta:
- Vocês são filhas? Ah, não parece, ela está muito melhor que vocês!
Disse isso com tal sinceridade que ninguém conseguiu tecer nenhum comentário. Antes de iniciar a oração se vira pra mim e afirma:
- Ah, mas você é neta, não é? Você parece...
Tomei isso como um elogio.

Bem, nisso entramos todos na capela , a senhora se vira para minha tia e pergunta o nome da falecida.
Momentos de tensão. Minha avó se chamava Cherubina, nome italiano que ela detestava. Pronuncia-se Querubina, e desde a infância ela amargava experiências como ser chamada de "quero bunda" pelos amiguinhos, que invariavelmente apanhavam sempre por isso. Todos a conheciam por Nina, e nessa hora vi minha tia parar para pensar se deveria falar Nina ou Cherubina.
Pensei: "Nina, tia!"
E ela finalmente resolve:
-Cherubina!
Ai, juro que achei que minha avó ia levantar naquela hora e espinafrar a filha. Óbvio que não aconteceu, mas que ela deve ter reclamado do além, isso deve.
Hora de começar a oração. A tal da senhora começa:
-Estamos aqui reunidos para nos despedir da nossa amiga... Como é mesmo o nome dela?
Minha tia, com cara de boba desde o comentário sobre sua aparência, responde:
- Cherubina.
- Ah,é. Estamos aqui para nos despedir da nossa amiga. Vamos tentar nos lembrar dessa mãe e avó, a... Como ela se chama mesmo?
De novo minha tia, já impaciente:
- Cherubina!
Olhei para minha prima, e entre lágrimas tivemos que nos segurar para não soltar uma risada.
- Sim, isso mesmo, Cherubina. A nossa amiga partiu para o encontro do Senhor, para o descanso merecido que essa senhora, a... mas qual é o nome?
Todos os presentes, em coro:
-CHERUBINA!!!!!
Não consegui mais conter o riso e nesse momento levei uma cotovelada do meu marido. Achei melhor evitar olhar para minha prima.

Depois disso a senhora resolveu encurtar a oração e finalizou rapidinho. Mas não conseguiu resistir a um último comentário para mim, baixinho, na porta da capela:
- Elas não parecem filhas, não, mas você parece neta!
Oba, mais um ponto pra mim! Afinal, vovó era bonita mesmo...

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